Especial Dia de Finados: A viagem para a vida eterna

No Dia de Finados, recordamos de forma especial daqueles que já partiram e refletimos sobre os mistérios que envolvem a morte. Em todas as culturas, está presente a idéia de que,  quando morremos, renascemos para a luz. Nesta matéria especial, você verá as diferentes concepções e rituais sobre a morte ao longo da história.

Desde a Pré-História




Quando um grupo de homens de Neanderthal colocou algumas flores junto ao corpo de um companheiro morto, transformou seu túmulo num portal para a eternidade. O Homem de Neanderthal desapareceu há 35 mil anos, dando lugar, na aventura da evolução, à espécie a que pertencemos, o Homo sapiens sapiens, mas sua herança, os rituais associados à morte, não foi esquecida.

Ao contrário, nesses 35 mil anos da espécie humana, o mistério da morte vem sendo uma presença constante e temida, algo que se deve aplacar por meio de cerimônias mágicas ou religiosas, para que o fluxo da vida não seja perturbado. A certeza da morte nos lembra que será breve nossa passagem pelo mundo, que seremos colhidos como flores. 

Mas o perfume das flores sobrevive, e em todas as culturas se desenvolveu a idéia de que a morte era apenas o fim de um ciclo, uma passagem necessária para se ingressar na verdadeira vida. A dor, nos rituais fúnebres, se associa à esperança e à convicção de que, ao morrermos, renascemos para a luz.

A prática do enterro

A visão da morte como fim de um ciclo ganhou força quando os homens tomaram consciência do ritmo das estações e passaram a se dedicar à agricultura. A partir da observação do ciclo de vida das plantas, eles concluíram que também os mortos renasceriam após um determinado período de germinação sob a terra. Vem daí a prática do enterro. 

Muitas vezes, o cadáver era colocado em posição fetal, como se estivesse vivendo uma nova gestação e fosse renascer. Essa prática era comum no Egito, a civilização na qual os rituais fúnebres assumiram tais proporções que se tornaram o fato central da existência.

O mistério da morte no Egito Antigo

Escritos por volta de 2350 a.C., os Textos das Pirâmides reúnem as mais antigas práticas religiosas e mágicas associadas à morte. Juntamente com os Textos dos Sarcófagos, menos antigos, são a base do Livro Egípcio dos Mortos, que contém os ensinamentos necessários para que o espírito do morto enfrente com sucesso o julgamento do deus Osíris. 

No julgamento, o coração do morto era colocado numa balança. Se estivesse cheio de pecados, seria devorado por um monstro. Se fosse um coração puro, a vida eterna estaria garantida, mas o conhecimento dos textos rituais ajudava a alcançar o favor divino. a partir de 1580 a.C. tornou-se costume colocar nos túmulos rolos de papiro com fórmulas salvadoras.



Personagem central dos rituais fúnebers, Osíris foi cultuado no Egito desde antes de 2400 a.C. até o século 4 da era cristã. Segundo a mitologia, quando era o deus supremo, ele teria sido morto e feito em pedaços por seu irmão Set, mas Ísis, sua esposa, teria reunido as catorze partes do corpo do marido e lhe restituído a vida. Osíris se tornou então o juiz das almas. Do país dos mortos ele controlava as águas do Nilo, o curso do Sol e os ciclos das plantações, numa clara reafirmação das associações entre agricultura, morte e renascimento.

O mistério da morte na Grécia Antiga

Poucas vezes essa associação foi proclamada de maneira tão poética quanto na cerimônia iniciática dos Mistérios de Elêusis. Instituído nessa cidade grega por volta de 1500 a.C., o ritual reverenciava Deméter e sua filha Perséfone, deusas ligadas à fecundidade e à morte. 

O mito conta que Perséfone foi raptada por Plutão, senhor do mundo inferior, para onde iam os mortos. Inconformada com a perda da filha, Deméter negou-se a exercer seus poderes e a sementes deixaram de germinar. Por fim, chegou-se a um acordo. Assim como as sementes ficam algum tempo enterradas para depois gerar frutos, Perséfone passaria três meses com o esposo, no mundo subterrâneo, e nos meses restantes estaria ao lado da mãe, protegendo as colheitas. Ao representar esse mito nos Mistérios de Elêusis, os iniciados reconheciam que a morte era uma passagem, inevitável e obrigatória, para atingir a luz.

A morte na tradição católica

Embora a visão de mundo dos gregos tenha influenciado o pensamento ocidental, na tradição católica a alma do morto vai para um dos seguintes planos espirituais: o Céu, que simboliza um estado de permanente felicidade; o Purgatório, no qual a alma pode se arrepender dos males que praticou em vida e ascender depois ao Céu; e o Inferno, símbolo de tormentos morais que se estenderão pela eternidade.

Para os católicos, rezar pelos que já morreram, oferecendo orações e missas em nome deles, poderia ajudá-los a sair mais rapidamente do Purgatório, alcançando a graça divina e a beatitude eterna. Aí está a origem do Dia de Finados: uma data especial para que os vivos rezem pelos que já morreram e que podem estar se purificando no Purgatório.

A morte no pensamento oriental

A noção de castigo eterno simplesmente não existe no pensamento oriental, que vê a vida e a morte como momentos de um longo processo de aprendizado. O hinduísmo, sistema de crenças criado há 3500 anos, baseia-se no ciclo de mortes e renascimentos e no conceito de carma, segundo o qual todos os atos, bons ou maus, configuram a personalidade individual, e as ações do passado influenciam as vidas futuras. Após uma série infindável de vidas, cada homem chegará À compreensão da verdade e se tornará um iluminado, reintegrando-se à matéria divina.

No século 6 a.C., o príncipe Sidarta Gautama ensinou como abreviar esse longo aprendizado no ciclo de mortes e reencarnações. Ele renunciou às ilusões do mundo para se tornar Buda, o Iluminado. Toda pessoa pode seguir um caminho semelhante e, por meio da meditação e do autoconhecimento, trocar seus desejos por um estado de não-desejo. Com isso, os renascimentos cessariam e se atingiria o nirvana, a ausência de individualidade e a integração à matéria divina.  Quem não alcançõu a iluminação deve retornar à roda do samsara, que abrange todos os seres: deuses, homens, animais, fantasmas e demônios. Nosso mundo seria uma das divisões desse círculo.


Os budistas tibetanos se preocupam em facilitar o ingresso do moribundo na outra vida, para lhe possibilitar uma reencarnação mais agradável. Demonstrações de dor, a presença das pessoas queridas e tudo que possa causar apego são substituídos pela entoação de mantras e pela leitura do Bardo Thödol, conhecido no Ocidente como Livro Tibetano dos Mortos. Esse roteiro místico ensina o caminho que o espírito deve trilhar e os obstáculos que o esperam até que recorde suas vidas anteriores e saiba se precisa reencarnar. 


Difundido no Ocidente a partir do século 19, o Bardo Thödol expressa uma verdade simples mas pertubadora: a morte é parte da vida e devemos nos preparar para ela. É esse, afinal, o ponto mais importante: minha preparação para minha morte. E a única maneira de efetuar essa preparação é considerar a morte e a vida como uma coisa só. É ver a morte como companheira sempre presente e aceitá-la. E, por isso mesmo, aceitar a vida e viver cada momento em sua plenitude. Como a semente, que cumpre seu destino ao germinar.

Texto de Cadu Silveira (com acréscimos e adaptações do editor do blog), publicado na revista Destino, nº 105, outubro/1995


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